Por
uma melancolia utópica
O filme Melancolia (2011),
de Lars Von Trier, nos conta sobre o antagonismo dos sentidos de vida de duas
irmãs. O diretor reparte a película em dois momentos, cada um com os nomes das respectivas
personagens. A parte um chama-se Justine, a mais nova, e trabalha com foco
maior na personagem que personifica, dentro de uma sociedade da imagem, do
consumo como valor universal de felicidade, aquela que fura, com sua falta de
sentido, toda essa convocação contemporânea de brilhantismo. O casamento de
Justine é um desastre e suas relações parecem uma imposição pelas convenções
sociais que requisitam uma máscara que teatraliza sempre um sorriso no rosto
acinzentado. Ela e sua irmã, Claire, são antagônicas e por isso a cada
encontro, sobretudo Claire, se assombra com o desdém da irmã quanto a tudo que
a primeira valoriza, no caso, essa vida mínima vendida em mercadorias, na qual
tudo ganha uma embalagem atrativa, uma promessa de gozo. Justine resiste,
insiste em não acreditar nessa vida regida pelas imagens-fluxos do Mercado.
Alguns olhos podem, no sentido de uma completa desindentificação com o Outro
capital, restando apenas um vazio inenarrável, colocar a personagem em uma
posição melancólica. Não existe nada que pareça alimentar Justine de sentidos
nisto que se chama vida. É um desânimo de viver...
A parte dois predomina
o desmoronar dos territórios existenciais tão bem edificados por Claire, seus
sentidos vão se esvaziando à medida que um planeta inesperado colide com a
terra, destruindo seu mundo. Neste segundo momento, Claire vai ficando cada vez
mais desesperada, pois sustentou-se em vida a partir de verdades compradas, por
convenções sociais que apontavam para um norte que seguia de maneira
sobreimplicada. Desamparada como um cordeirinho sem pastor, a cada minuto da
segunda parte do filme, mostrava sua incapacidade de abraçar esse destino que
se impôs de maneira inesperada. Como uma marionete que só se mexe com as mãos
de um Outro, acaba paralisada para lidar com a falência do que a governa e que
lhe oferecia, até então, um caminho restrito mas seguro a seguir. Morre antes
mesmo do mundo desaparecer...
O detalhe é que nesta
última parte da obra cinematográfica, Justine começa a se habitar de promessa
de vida, a falência dos sentidos do mundo a partir da aproximação de seu fim
lhe enche de potência. Com absoluta coragem se entrega a este inesperado que
faz despencar mundos. Justine, antes melancólica, se transfigura em uma
personagem trágica-utópica, pois nunca amou tanto um destino que lhe invadia e,
ao mesmo tempo, pisava com força no terreno que sempre habitou, no caso, a
negação desse lugar que até então lhe sujeitavam a viver quando enlaçada pelas
convenções sociais. Nunca acreditou no mundo que a vendiam, sua transferência
para este discurso do capitalista há muito tempo estava liquidada e, vislumbrar
sua decadência, o desaparecimento de um enlace que somente a enforcava, trazia
o maior dos alívios.
Resgato este clássico
para pensar as circunstâncias que se abatem sobre o nosso mundo na atualidade.
Creio que temos algo similar ao filme e ao mesmo tempo inesperadamente singular
acontecendo. O mundo parece desmoronar sobre nossas cabeças, não por um planeta
em colisão com a terra, mas por um vírus gripal. O real emudeceu as
possibilidades discursivas, e parece que uma ressaca marítima transbordou as
margens da praia e levou consigo todas as pegadas, os direcionamentos que
sustentavam os caminhantes. Temos um espaço liso para deslizar, para habitar, uma
convocação para a invenção de novos passos-mundos nos faz questão. Em outras
palavras, essas mais freudianas, o desamparo retornou com toda força que lhe
cabe, e talvez, não à toa, alguns pastores se negam a fechar seus templos e
mitos resistem a pisar no terreno da realidade. Temos uma ameaça eminente de
desnorteamento, com a qual, sobretudo aqueles que se autonomeiam pastores ou
mitos, ficam desesperados. Como demônios exorcizados ficam a se debater e a
gritar suas palavras de ordem caducadas.
Contudo, e o mais
importante a destacar, é que cada um, em suas prisões domiciliares pela
quarentena, assinada ou não pelos chefes de estado de cada país, tem a
possibilidade de se sentir um bocado patético por sustentar e se sujeitar a
este mundo que prioriza o mercado e não as pessoas. A Claire de cada um se
apresenta espantada com a falência de um sistema que nunca esteve voltado para
as pessoas, afinal, já nos avisara Marx e Lacan, o Estado é apenas o balcão de negócios
da burguesia e é para isso que ele opera, com o qual participamos no papel de
servos, sem possibilidade de desejar. A eminência deste mundo ruir nos assombra,
esquecê-lo não é fácil, a praia está lisa de pegadas, mas não há muitos
transeuntes a se arriscarem a percorrê-las no momento... quem dará o próximo
passo?
Quem dará e como será
este passo, talvez, no momento, não importa tanto, pois temos que primeiramente
aprender a lidar com a angústia novamente, a sustentar essa posição de não
saber, do deserto de pegadas e destinos, da vontade de nada que o capitalismo
nos roubou para gerenciar como instituição norteadora da vida na atualidade. Quem
sabe, sem a sustentação de um passado destronado, rabiscar futuros se fará
possível? Intuo que estamos sendo convocados a deslizar por outras experiências
de relações sociais a partir dessa desaceleração da vida que nos tomou. Cidades
estão menos poluídas, em Veneza, em seus canais antes tomados por uma coloração
escurecida e fétida, se vê peixes em águas esverdeadas. Será que nós, humanos,
também não podemos aproveitar essa onda para nos despoluirmos um pouco de nosso
mestre? O momento é de convocação à humanidade na produção desejante de movimentos
que nos distanciem a tal ponto do sistema capitalista que não consigamos mais
lembrar o caminho de casa. Perdidos e cambaleantes, caso tenhamos a coragem de
Justine de não ficar pregada em nenhuma cruz, poderemos presentear a deusa Gaia
com uma humanidade mais inventiva, colisão sem volta.