domingo, 22 de março de 2020

sobre melancolia e utopia


Por uma melancolia utópica

O filme Melancolia (2011), de Lars Von Trier, nos conta sobre o antagonismo dos sentidos de vida de duas irmãs. O diretor reparte a película em dois momentos, cada um com os nomes das respectivas personagens. A parte um chama-se Justine, a mais nova, e trabalha com foco maior na personagem que personifica, dentro de uma sociedade da imagem, do consumo como valor universal de felicidade, aquela que fura, com sua falta de sentido, toda essa convocação contemporânea de brilhantismo. O casamento de Justine é um desastre e suas relações parecem uma imposição pelas convenções sociais que requisitam uma máscara que teatraliza sempre um sorriso no rosto acinzentado. Ela e sua irmã, Claire, são antagônicas e por isso a cada encontro, sobretudo Claire, se assombra com o desdém da irmã quanto a tudo que a primeira valoriza, no caso, essa vida mínima vendida em mercadorias, na qual tudo ganha uma embalagem atrativa, uma promessa de gozo. Justine resiste, insiste em não acreditar nessa vida regida pelas imagens-fluxos do Mercado. Alguns olhos podem, no sentido de uma completa desindentificação com o Outro capital, restando apenas um vazio inenarrável, colocar a personagem em uma posição melancólica. Não existe nada que pareça alimentar Justine de sentidos nisto que se chama vida. É um desânimo de viver...
A parte dois predomina o desmoronar dos territórios existenciais tão bem edificados por Claire, seus sentidos vão se esvaziando à medida que um planeta inesperado colide com a terra, destruindo seu mundo. Neste segundo momento, Claire vai ficando cada vez mais desesperada, pois sustentou-se em vida a partir de verdades compradas, por convenções sociais que apontavam para um norte que seguia de maneira sobreimplicada. Desamparada como um cordeirinho sem pastor, a cada minuto da segunda parte do filme, mostrava sua incapacidade de abraçar esse destino que se impôs de maneira inesperada. Como uma marionete que só se mexe com as mãos de um Outro, acaba paralisada para lidar com a falência do que a governa e que lhe oferecia, até então, um caminho restrito mas seguro a seguir. Morre antes mesmo do mundo desaparecer...
O detalhe é que nesta última parte da obra cinematográfica, Justine começa a se habitar de promessa de vida, a falência dos sentidos do mundo a partir da aproximação de seu fim lhe enche de potência. Com absoluta coragem se entrega a este inesperado que faz despencar mundos. Justine, antes melancólica, se transfigura em uma personagem trágica-utópica, pois nunca amou tanto um destino que lhe invadia e, ao mesmo tempo, pisava com força no terreno que sempre habitou, no caso, a negação desse lugar que até então lhe sujeitavam a viver quando enlaçada pelas convenções sociais. Nunca acreditou no mundo que a vendiam, sua transferência para este discurso do capitalista há muito tempo estava liquidada e, vislumbrar sua decadência, o desaparecimento de um enlace que somente a enforcava, trazia o maior dos alívios.
Resgato este clássico para pensar as circunstâncias que se abatem sobre o nosso mundo na atualidade. Creio que temos algo similar ao filme e ao mesmo tempo inesperadamente singular acontecendo. O mundo parece desmoronar sobre nossas cabeças, não por um planeta em colisão com a terra, mas por um vírus gripal. O real emudeceu as possibilidades discursivas, e parece que uma ressaca marítima transbordou as margens da praia e levou consigo todas as pegadas, os direcionamentos que sustentavam os caminhantes. Temos um espaço liso para deslizar, para habitar, uma convocação para a invenção de novos passos-mundos nos faz questão. Em outras palavras, essas mais freudianas, o desamparo retornou com toda força que lhe cabe, e talvez, não à toa, alguns pastores se negam a fechar seus templos e mitos resistem a pisar no terreno da realidade. Temos uma ameaça eminente de desnorteamento, com a qual, sobretudo aqueles que se autonomeiam pastores ou mitos, ficam desesperados. Como demônios exorcizados ficam a se debater e a gritar suas palavras de ordem caducadas.
Contudo, e o mais importante a destacar, é que cada um, em suas prisões domiciliares pela quarentena, assinada ou não pelos chefes de estado de cada país, tem a possibilidade de se sentir um bocado patético por sustentar e se sujeitar a este mundo que prioriza o mercado e não as pessoas. A Claire de cada um se apresenta espantada com a falência de um sistema que nunca esteve voltado para as pessoas, afinal, já nos avisara Marx e Lacan, o Estado é apenas o balcão de negócios da burguesia e é para isso que ele opera, com o qual participamos no papel de servos, sem possibilidade de desejar. A eminência deste mundo ruir nos assombra, esquecê-lo não é fácil, a praia está lisa de pegadas, mas não há muitos transeuntes a se arriscarem a percorrê-las no momento... quem dará o próximo passo?
Quem dará e como será este passo, talvez, no momento, não importa tanto, pois temos que primeiramente aprender a lidar com a angústia novamente, a sustentar essa posição de não saber, do deserto de pegadas e destinos, da vontade de nada que o capitalismo nos roubou para gerenciar como instituição norteadora da vida na atualidade. Quem sabe, sem a sustentação de um passado destronado, rabiscar futuros se fará possível? Intuo que estamos sendo convocados a deslizar por outras experiências de relações sociais a partir dessa desaceleração da vida que nos tomou. Cidades estão menos poluídas, em Veneza, em seus canais antes tomados por uma coloração escurecida e fétida, se vê peixes em águas esverdeadas. Será que nós, humanos, também não podemos aproveitar essa onda para nos despoluirmos um pouco de nosso mestre? O momento é de convocação à humanidade na produção desejante de movimentos que nos distanciem a tal ponto do sistema capitalista que não consigamos mais lembrar o caminho de casa. Perdidos e cambaleantes, caso tenhamos a coragem de Justine de não ficar pregada em nenhuma cruz, poderemos presentear a deusa Gaia com uma humanidade mais inventiva, colisão sem volta.