terça-feira, 21 de março de 2017

Os doces portugueses são mais vistosos do que saborosos e eu não os paro de comer...

Hoje acordei cansado.
Desanimado com a impossibilidade de sonhar.
O frio não compõe com o meu corpo, ele me debilita muito, me deixa inflamado por dentro. Por mais que as inflamações possam indicar questões, a toda hora isso cansa. Neste sentido, o sonho europeu vai se distanciando. O mais prudente é que a Europa seja um lugar de passagem, de visitas esporádicas.
Mas cá estou a pensar que a academia, como hoje é armada, também será um lugar de passagem. Amo aprender, ler, pensar, escrever, trocar ideias com alunos, colegas, professores, mas isto é vinte por cento, no máximo, do que se exige na academia. Há uma exigência burocrática desencantadora junto ao meio acadêmico, e creio que isso só ficará pior com o passar dos anos. A precarização do trabalho é iminente em todo o mundo e ninguém mais parece conseguir ter estabilidade para parar em reflexões mais extensas e “pouco” produtivas em termos de publicações, por exemplo. Tudo isso diz respeito a desvalorização do professor, do escritor, do pensador no mundo de hoje. O que importa são metas, publicações, projetos, editais que salvem a renda dos acadêmicos. Não há tempo de parada neste meio competitivo como todos os outros que giram em torno do capital. A cada semestre, a cada ano, o acadêmico que se prese, e que deseje sobreviver disso, deve lançar-se em busca de editais que financiem seus projetos que, com sinceridade, pouco muda o mundo para além de salvar seu salário. Não há desejo de pensar o pesquisar, há desejo de editais, de financiamentos, de busca de recursos, é uma rinha de galo a cada dia.
Com tudo isso fico a pensar o quanto a vida se gasta inutilmente nessas relações de busca de recursos, acadêmicos felizes pelas migalhas que ganham sem perceberem que suas vidas vão fenecendo sem saírem dessa bolha. Certamente não existe diferença entre este meio e todos os outros que estão dentro do sistema capitalista, a academia é só mais um lugar no qual se entrega a vida para se receber alguns trocados, algumas viagens, algumas fotos requintadas e de sucesso.
Pergunto-me se tudo isso vale a pena. Para que se enfiar neste meio, ficar a vida inteira nesta velocidade acelerada e depois ver que a vida passou sem desfrutar de um mínimo de sossego? São TCCs a orientar, editais a se concorrer, textos a publicar, discussões entre iguais para ver quem se destaca mais em um meio cheio de gente querendo ser genial. Para que serve tanto desgaste, tanta gastura de vida?
Meu desejo é ser escritor, ler, participar de discussões com professores e alunos e ponto! E no momento a única coisa que não faço é isso, emaranhado que estou com os “compromissos” acadêmicos. Parece que superando as etapas um dia chego neste lugar desejante. Mas já se vão quase 15 anos e não parece que tenha me movido muito ao ponto de me ver fora dessas garras que me jogam para tal sistema burocratizante.
Minhas condições financeiras parecem não me ajudar muito também, não me sinto convencido de que possa sair dessa rede acadêmica sem me dar mal. Desistir dela agora!? Depois de tantos esforços!? Mal sei pregar um prego, o que eu iria fazer para garantir o mínimo?
Num mundo que poucos leem como poderia apostar em viver de escrita? E será eu alguém que tenha talento para isso? Vai saber...
Para além disso, sinto que cada lugar que imagino ser meu oásis, ao chegar nele, logo tal esperança se esvazia, torna-se frequente o minguar das expectativas que tinha por tal encantamento passado. E isso não é tratável, em tudo sou assim, o mundo é assim! Desanimo fácil de minhas conquistas, seja em âmbito amoroso, no estudo ou trabalho, há sempre um objeto melhor a se consumir-desejar. O ideal seria ser nômade, mas sem garantias financeiras fica difícil nos dias de hoje, ao menos para mim, apegado que sou a certos confortos.

Enfim, meus sonhos, como os doces portugueses, são vistosos, mas ao degustá-los logo perdem a graça, o sabor. O pior é que não consigo parar de comê-los, de consumi-los, de gastá-los pelo mundo, com um tom sempre blasé, gosto do que perdeu a graça... Até quando?

segunda-feira, 20 de março de 2017

Corpo esticado, corpo rompido, corpo nave(ou)gado

Saudade quero ver pra crer
Saudade de te procurar
Na vida tudo pode acontecer
Partir e nunca mais voltar
Como um bom barco no mar
Eu vou, eu vou

(Otto, Saudade)

Este fim de semana foi reservado para repetir alguns territórios que habito no Brasil, afinal, foram 15 dias sem parar de estranhar-me neste velho continente, o corpo cansa, pede repouso. Para começar, minha sinusite, amiga que me visita em todos os invernos, bateu na porta, ou melhor, arrombou-a e se deitou comigo. Que apego tenho por ela, nos abraçamos tão bem que não resisto e cedo. Essa amiga me faz ficar manso, parado, quieto. São momentos lentificadores da alma, não os suporto muito confesso, mas são necessários por vezes e até prazerosos. E sempre que tal companheira me invade necessito cumprir um ritual: ir ao hospital, pegar receita com um médico que aceita meu diagnóstico antes de me examinar, passar na farmácia, tomar remédios e ficar parado em casa.
Na parada deste findi acabei por ouvir Otto; assistir vídeos do Inter por conta dos 350 jogos do D’Ale, que coincidiu com o dia de nascimento do Fernandão, mesmo dia que minha vó veio a falaecer (aqui deixo errada minha escrita, pois ao revisar o texto achei que essa escrita falha dizia da morte silenciosa que sentimos em falar algo quando alguém que amamos morre, ou seja, um falecer da fala, da palavra, não há palavra!) em 18 de março de 2014; e ainda relembrei e fucei em entrevistas do Deleuze sobre a amizade e a potência aterrorizante do se jogar  na vida confiando no que o destino trará.
Se jogar sem ver o chão é coisa muito doida e doída ao mesmo tempo, é um perder o norte, o prumo, é entrar numa onda, é amar, ziguezaguear frágil pela vida. Não à toa Deleuze fala que a amizade é aquele instante íntimo de sintonia que temos com raríssimas pessoas no decorrer da vida. Este instante íntimo, que cabemos de maneira justa no corpo do amigo de tão ligados que ficamos, nos ajuda a suportar o sem chão, o acaso, a deriva em alto mar que todos estamos, mesmo que neguemos para fins de controle do desamparo. Percebemos nestes encontros de amizade que não estamos sozinhos para navegar fora das rotas. Nada melhor do que o olhar que nos olha e confirma o que se está a pensar, encontro de almas! Uma possível ética clínica?
No hospital, terreno conhecido mesmo em outro país, já que as arquiteturas disciplinares não mudam muito, sentia-me em casa ao cumprir o rito redundante. Mas outra amiga minha, esta de carne e osso, que está a morar por aqui há mais tempo, chorava no face perante sua filinha adoentada. Afirmava a tristeza, um resmungo com a vida sem apelações, coisa corajosa de se fazer nas redes sociais que normalmente enaltecem os acontecimentos de sucesso. Ela fez com que notasse um descompasso que sentia naquele hospital até então familiar, um descompasso de estar à mercê de um outro que por mais próximo que fosse dos meus costumes, ainda se separa de mim por um oceano inteiro. Não saber a direção do banheiro, desconhecer o caminho do raio-x, não entender ao certo em como se portar frente aquele que se coloca como cuidador... coisas simples mas que o embaraço do estrangeirismo nos faz parecer tontos com tais situações. Existe uma fragilidade em tudo isso, e o hospital com o auxílio da minha amiga explicitou o que é corriqueiro quando estamos no estrangeiro: a desabitação do familiar.
Minha última parada no fim de semana foi no shopping de Coimbra, lugar mais próximo de casa que possuía uma farmácia. Eu, sempre resistente a shoppings, pela primeira vez senti um pouco de felicidade de estar neste lugar. A globalização, na qual um shopping representa muito bem, constrói um território igual em todos os lugares do mundo. De Tóquio a Paris, de Porto a Porto, de Coimbra a Sydney temos comida japonesa, MCdonald’s, cinema de circuito internacional e pop, escadas rolantes, sorvetes, livros e um festival de propagandas e consumo de marcas. E no shopping de Coimbra ainda tinha uma churrascaria de nome chimarrão! Estava em casa, neste lar que todos compartilhamos nos dias de hoje, sem intimidade, sem regionalidades, impessoal, mas que oferece a possibilidade de consumo de marcas que aprendemos a nos apegar desde a mais tenra infância. Senti uma paz mesmo que fugaz... Tempos líquido?

Mas para quê todo esse escrito sobre doença, habitação de territórios não familiares e a vontade sempre matreira de retornar ao lar? Creio que para enaltecer os territórios moventes, o pulo do precipício, o jogar-se na tempestade em alto mar, o provar do amor e o adoecimento que tudo isso causa no corpo rebanhento que nos tornamos. Minha amiga sinusite é um reclame do meu corpo docilizado, um freio, um puxar de rédeas sobre a minha própria vida assustada diante da tragicidade existencial, não deixando que eu voe mais longe do que minha capacidade corporal formatada aguenta. Neste sentido, aceito convalescer, pois com isto percebo que fui mais além de mim, que deixei meu corpo desorientado, que nele exerceu-se forças estrangeiras. Mesmo que ele fique em frangalhos por algum tempo, necessitando certas paradas, é com este frio na barriga do desterritorializar-se que meu corpo ganha maior envergadura interior, suportando a vida sem a necessidade de proteger-se com marcas vendidas e compradas que não dizem nada sobre a real singularidade do viver. Uma felicidade estranha como diria Deleuze, como um bom barco no mar eu vou, eu vou...


https://www.youtube.com/watch?v=Chz7ey_O0ZI&t=1s