Saudade quero ver pra crer
Saudade de te procurar
Na vida tudo pode acontecer
Partir e nunca mais voltar
Como um bom barco no mar
Eu vou, eu vou
(Otto, Saudade)
Este fim de semana foi
reservado para repetir alguns territórios que habito no Brasil, afinal, foram
15 dias sem parar de estranhar-me neste velho continente, o corpo cansa, pede
repouso. Para começar, minha sinusite, amiga que me visita em todos os invernos,
bateu na porta, ou melhor, arrombou-a e se deitou comigo. Que apego tenho por
ela, nos abraçamos tão bem que não resisto e cedo. Essa amiga me faz ficar
manso, parado, quieto. São momentos lentificadores da alma, não os suporto
muito confesso, mas são necessários por vezes e até prazerosos. E sempre que
tal companheira me invade necessito cumprir um ritual: ir ao hospital, pegar
receita com um médico que aceita meu diagnóstico antes de me examinar, passar
na farmácia, tomar remédios e ficar parado em casa.
Na parada deste findi
acabei por ouvir Otto; assistir vídeos do Inter por conta dos 350 jogos do
D’Ale, que coincidiu com o dia de nascimento do Fernandão, mesmo dia que minha
vó veio a falaecer (aqui deixo errada minha escrita, pois ao revisar o texto
achei que essa escrita falha dizia da morte silenciosa que sentimos em falar
algo quando alguém que amamos morre, ou seja, um falecer da fala, da palavra,
não há palavra!) em 18 de março de 2014; e ainda relembrei e fucei em
entrevistas do Deleuze sobre a amizade e a potência aterrorizante do se jogar na vida confiando no que o destino trará.
Se jogar sem ver o chão é
coisa muito doida e doída ao mesmo tempo, é um perder o norte, o prumo, é
entrar numa onda, é amar, ziguezaguear frágil pela vida. Não à toa Deleuze fala
que a amizade é aquele instante íntimo de sintonia que temos com raríssimas
pessoas no decorrer da vida. Este instante íntimo, que cabemos de maneira justa
no corpo do amigo de tão ligados que ficamos, nos ajuda a suportar o sem chão,
o acaso, a deriva em alto mar que todos estamos, mesmo que neguemos para fins
de controle do desamparo. Percebemos nestes encontros de amizade que não
estamos sozinhos para navegar fora das rotas. Nada melhor do que o olhar que
nos olha e confirma o que se está a pensar, encontro de almas! Uma possível
ética clínica?
No hospital, terreno
conhecido mesmo em outro país, já que as arquiteturas disciplinares não mudam
muito, sentia-me em casa ao cumprir o rito redundante. Mas outra amiga minha,
esta de carne e osso, que está a morar por aqui há mais tempo, chorava no face
perante sua filinha adoentada. Afirmava a tristeza, um resmungo com a vida sem
apelações, coisa corajosa de se fazer nas redes sociais que normalmente
enaltecem os acontecimentos de sucesso. Ela fez com que notasse um descompasso
que sentia naquele hospital até então familiar, um descompasso de estar à mercê
de um outro que por mais próximo que fosse dos meus costumes, ainda se separa
de mim por um oceano inteiro. Não saber a direção do banheiro, desconhecer o
caminho do raio-x, não entender ao certo em como se portar frente aquele que se
coloca como cuidador... coisas simples mas que o embaraço do estrangeirismo nos
faz parecer tontos com tais situações. Existe uma fragilidade em tudo isso, e o
hospital com o auxílio da minha amiga explicitou o que é corriqueiro quando
estamos no estrangeiro: a desabitação do familiar.
Minha última parada no
fim de semana foi no shopping de Coimbra, lugar mais próximo de casa que
possuía uma farmácia. Eu, sempre resistente a shoppings, pela primeira vez
senti um pouco de felicidade de estar neste lugar. A globalização, na qual um
shopping representa muito bem, constrói um território igual em todos os lugares
do mundo. De Tóquio a Paris, de Porto a Porto, de Coimbra a Sydney temos comida
japonesa, MCdonald’s, cinema de circuito internacional e pop, escadas rolantes,
sorvetes, livros e um festival de propagandas e consumo de marcas. E no
shopping de Coimbra ainda tinha uma churrascaria de nome chimarrão! Estava em
casa, neste lar que todos compartilhamos nos dias de hoje, sem intimidade, sem
regionalidades, impessoal, mas que oferece a possibilidade de consumo de marcas
que aprendemos a nos apegar desde a mais tenra infância. Senti uma paz mesmo
que fugaz... Tempos líquido?
Mas para quê todo esse
escrito sobre doença, habitação de territórios não familiares e a vontade
sempre matreira de retornar ao lar? Creio que para enaltecer os territórios
moventes, o pulo do precipício, o jogar-se na tempestade em alto mar, o provar
do amor e o adoecimento que tudo isso causa no corpo rebanhento que nos
tornamos. Minha amiga sinusite é um reclame do meu corpo docilizado, um freio,
um puxar de rédeas sobre a minha própria vida assustada diante da tragicidade
existencial, não deixando que eu voe mais longe do que minha capacidade
corporal formatada aguenta. Neste sentido, aceito convalescer, pois com isto
percebo que fui mais além de mim, que deixei meu corpo desorientado, que nele
exerceu-se forças estrangeiras. Mesmo que ele fique em frangalhos por algum
tempo, necessitando certas paradas, é com este frio na barriga do
desterritorializar-se que meu corpo ganha maior envergadura interior,
suportando a vida sem a necessidade de proteger-se com marcas vendidas e
compradas que não dizem nada sobre a real singularidade do viver. Uma
felicidade estranha como diria Deleuze, como um bom barco no mar eu vou, eu
vou...
https://www.youtube.com/watch?v=Chz7ey_O0ZI&t=1s
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