Escrevo esta carta aos
extensionistas da vida. Para aqueles que primam pelo contato, pela afecção dos
encontros antes mesmo de pressuporem um saber...
Aos ignorantes, minha
saudação!
Retornando de carro para
Porto Alegre - depois de um dia de trabalho num Projeto de Extensão universitário – uma dor de cabeça me
acompanhava, na verdade, me perseguia, e eu, em um primeiro instante, só desejava
fugir dela, até porque quase nunca lido com este problema de dor de cabeça.
Contudo, algumas imagens, vozes e, sobretudo um cheiro começara a me invadir e
a me transportar para acontecimentos vividos no ato de cuidado praticado no
projeto pela tarde.
Tal cheiro que
identifiquei como a causa da dor de cabeça me invadiu durante uma das visitas
que realizei com minha equipe de estagiárias na qual sou o tutor. Um cheiro de
urina extremamente forte se fazia presente, penetrando pelos poros do meu corpo
a cada instante que tentava me aproximar, mesmo que fosse pela escuta, do
usuário que visitávamos pela primeira vez. Hoje a tarde tive a sensação de
estar mergulhado em uma piscina de “xixi”, quase me afogando e levando junto
qualquer esperança de cuidar do usuário que se fazia presente na minha frente.
O
pior é que em uma conversa entre as ruelas do bairro no retorno para a Unidade
Básica de Saúde, junto a uma das bolsistas extensionistas do projeto, descubro
que o caso foi endereçado para minha equipe devido as minhas experiências com a
população em situação de rua que acompanhava a partir do serviço Consultório na
Rua tempos atrás. Depositaram em mim a esperança de mostrar as
extensionistas, isto é, as jovens estudantes de variados cursos da saúde e de
outras áreas de conhecimento, que seria possível praticar o cuidado, o
acolhimento integral em saúde, daquele senhor já um pouco caduco e de fala
enrolada que parecia ter saído de um banho de “xixi”.
Como
eu poderia mostrar isso as alunas? Nem mesmo eu acreditava que isso seria
possível, já que toda a minha atenção no encontro, basicamente, se voltara para
a tentativa de me desvencilhar do cheiro de urina que parecia me cobrir. Literalmente,
“tomamos um xixi”, só que agora não mais das “profs” das salas de aula, mas,
sim, da vida e das práticas de saúde que, muitas vezes, nos fazem tremer. Na
conversa junto a minha equipe, já na UBS, descobri que tal sentimento não era
somente meu, sendo compartilhado com todas as alunas. A sensação que tivemos é
que se pudéssemos, não voltaríamos aquela casa. Saí do encontro de trabalho
desanimado, sem nenhuma ideia de como convencer minhas alunas e eu
mesmo que poderíamos retornar ao usuário com a gana de escutá-lo, independente
do mijo que ficou em nossa memória afetiva deste primeiro encontro.
Dei-me conta que estava
enferrujado para este tipo de escuta-atenção-cuidado...
O cheiro agora me
incomoda, e me deparo que ultimamente estou preferindo os lugares mais
confortáveis como a academia e o consultório, lugares tomados por uma assepsia que
nos protege do incômodo e que por isso nos facilita a requerer uma acomodação
pouco criativa.
Isto
que começou a vir na minha cabeça no decorrer da estrada, mesmo que com todo o
mau cheiro que ia novamente me penetrando, começou a aliviar minha dor de
cabeça. Comecei a flutuar nos pensamentos sobre como poderia produzir potência
neste cuidado em questão junto ao usuário e em como convencer as alunas e eu
mesmo dessa possibilidade. E, a primeira coisa que me veio à cabeça é que o
cuidado genuíno, que aprendemos algo e nos transforma, forçando-nos a flexibilizar a alma, justamente, se passa nos “casos difíceis”,
nos encontros impensáveis que causam paralisia, desmotivação e que nos deixam
com os ombros caídos. São estes casos não protocolados - não vistos em salas de aula e em pesquisas por sempre escaparem da
previsibilidade - que nos desafiam a produzir pensamento, nos jogando em uma
zona de experimentação na qual não temos boia e que temos que nadar mesmo se
não soubermos para não nos afogarmos, inclusive, em um mar de “xixi”.
A
segunda coisa que me dei conta na minha viagem é que a última vez que tinha
experimentado este tipo de cuidado em ato ocorrera há dois ou três anos.
Após o Consultório na Rua, basicamente, passei a lecionar, pesquisar,
supervisionar e orientar na academia, e a escutar pacientes em consultório
particular. Lugares protegidos nos quais temos um suposto
controle sobre as ações que por ali se desenrolam, que acomodam de
maneira a não precisar sofrer no corpo o espanto do que nos corta com sua
diferença, com sua não adequação aos espaços limpos da academia e do
consultório. Logo percebi a importância de enaltecer e de dar as boas-vindas a
este projeto que começo a adentrar.
A extensão tem disso, nos joga para um lugar desprotegido, fora do ambiente acadêmico, nos desampara
forçando-nos a procurar abrigo no vir a ser, no que é incerto, no que nos abre
para um mundo em criação, uma experimentação! No caso de um projeto de extensão
em atenção à saúde, nos joga para “a vida como ela é” como diria Nelson
Rodrigues, para a vida singular que a cada encontro iremos escutar e tentar
colocá-la no que até então aprendemos nos meios acadêmicos. Mas que, com o
passar do tempo, acabamos por perceber como tais singularidades não cabem em
caixinhas ajustáveis de saber, elas escapam, nos causam náuseas, são
incontroláveis.
Neste
sentido, tento refletir se a aprendizagem em saúde se passa junto ao
protocolável e controlável, ou se, justamente, se passa quando acolhemos aquilo
que nos escapa e que queremos escapar a qualquer custo. Creio que nosso corpo
precisa se chocar com esses incontroláveis para ter mais vigor a cada dia, para
experimentar a diferença e com ela aprender que a vida não cabe em manuais,
sobretudo, quando se trata do cuidado em saúde.
Para
finalizar esta carta-diário, saliento a importância para olharmos-escutarmos
nossas dores, os mal-estares que possam advir em meio as novas intervenções de
cuidado, pois, elas, geralmente, nos convocam a pensar e a criar formas de
maturar um encontro de atenção à saúde que, em um primeiro momento, nos escapa. É
importante que façamos questão em relação as nossas dores, não as anestesiando
como normalmente fazemos com as dorezinhas de cabeça que volta e meia nos
incomodam na volta para a casa...