terça-feira, 22 de maio de 2018

CARTA AOS JOVENS EXTENSIONISTAS OU UM DIÁRIO EXPERIMENTAL DE CUIDADO


Escrevo esta carta aos extensionistas da vida. Para aqueles que primam pelo contato, pela afecção dos encontros antes mesmo de pressuporem um saber...
Aos ignorantes, minha saudação!
Retornando de carro para Porto Alegre - depois de um dia de trabalho num Projeto de Extensão universitário – uma dor de cabeça me acompanhava, na verdade, me perseguia, e eu, em um primeiro instante, só desejava fugir dela, até porque quase nunca lido com este problema de dor de cabeça. Contudo, algumas imagens, vozes e, sobretudo um cheiro começara a me invadir e a me transportar para acontecimentos vividos no ato de cuidado praticado no projeto pela tarde.
Tal cheiro que identifiquei como a causa da dor de cabeça me invadiu durante uma das visitas que realizei com minha equipe de estagiárias na qual sou o tutor. Um cheiro de urina extremamente forte se fazia presente, penetrando pelos poros do meu corpo a cada instante que tentava me aproximar, mesmo que fosse pela escuta, do usuário que visitávamos pela primeira vez. Hoje a tarde tive a sensação de estar mergulhado em uma piscina de “xixi”, quase me afogando e levando junto qualquer esperança de cuidar do usuário que se fazia presente na minha frente.
            O pior é que em uma conversa entre as ruelas do bairro no retorno para a Unidade Básica de Saúde, junto a uma das bolsistas extensionistas do projeto, descubro que o caso foi endereçado para minha equipe devido as minhas experiências com a população em situação de rua que acompanhava a partir do serviço Consultório na Rua tempos atrás. Depositaram em mim a esperança de mostrar as extensionistas, isto é, as jovens estudantes de variados cursos da saúde e de outras áreas de conhecimento, que seria possível praticar o cuidado, o acolhimento integral em saúde, daquele senhor já um pouco caduco e de fala enrolada que parecia ter saído de um banho de “xixi”.
            Como eu poderia mostrar isso as alunas? Nem mesmo eu acreditava que isso seria possível, já que toda a minha atenção no encontro, basicamente, se voltara para a tentativa de me desvencilhar do cheiro de urina que parecia me cobrir. Literalmente, “tomamos um xixi”, só que agora não mais das “profs” das salas de aula, mas, sim, da vida e das práticas de saúde que, muitas vezes, nos fazem tremer. Na conversa junto a minha equipe, já na UBS, descobri que tal sentimento não era somente meu, sendo compartilhado com todas as alunas. A sensação que tivemos é que se pudéssemos, não voltaríamos aquela casa. Saí do encontro de trabalho desanimado, sem nenhuma ideia de como convencer minhas alunas e eu mesmo que poderíamos retornar ao usuário com a gana de escutá-lo, independente do mijo que ficou em nossa memória afetiva deste primeiro encontro.
Dei-me conta que estava enferrujado para este tipo de escuta-atenção-cuidado...
O cheiro agora me incomoda, e me deparo que ultimamente estou preferindo os lugares mais confortáveis como a academia e o consultório, lugares tomados por uma assepsia que nos protege do incômodo e que por isso nos facilita a requerer uma acomodação pouco criativa.
            Isto que começou a vir na minha cabeça no decorrer da estrada, mesmo que com todo o mau cheiro que ia novamente me penetrando, começou a aliviar minha dor de cabeça. Comecei a flutuar nos pensamentos sobre como poderia produzir potência neste cuidado em questão junto ao usuário e em como convencer as alunas e eu mesmo dessa possibilidade. E, a primeira coisa que me veio à cabeça é que o cuidado genuíno, que aprendemos algo e nos transforma, forçando-nos a flexibilizar a alma, justamente, se passa nos “casos difíceis”, nos encontros impensáveis que causam paralisia, desmotivação e que nos deixam com os ombros caídos. São estes casos não protocolados - não vistos em salas de aula e em pesquisas por sempre escaparem da previsibilidade - que nos desafiam a produzir pensamento, nos jogando em uma zona de experimentação na qual não temos boia e que temos que nadar mesmo se não soubermos para não nos afogarmos, inclusive, em um mar de “xixi”.
            A segunda coisa que me dei conta na minha viagem é que a última vez que tinha experimentado este tipo de cuidado em ato ocorrera há dois ou três anos. Após o Consultório na Rua, basicamente, passei a lecionar, pesquisar, supervisionar e orientar na academia, e a escutar pacientes em consultório particular. Lugares protegidos nos quais temos um suposto controle sobre as ações que por ali se desenrolam, que acomodam de maneira a não precisar sofrer no corpo o espanto do que nos corta com sua diferença, com sua não adequação aos espaços limpos da academia e do consultório. Logo percebi a importância de enaltecer e de dar as boas-vindas a este projeto que começo a adentrar.
A extensão tem disso, nos joga para um lugar desprotegido, fora do ambiente acadêmico, nos desampara forçando-nos a procurar abrigo no vir a ser, no que é incerto, no que nos abre para um mundo em criação, uma experimentação! No caso de um projeto de extensão em atenção à saúde, nos joga para “a vida como ela é” como diria Nelson Rodrigues, para a vida singular que a cada encontro iremos escutar e tentar colocá-la no que até então aprendemos nos meios acadêmicos. Mas que, com o passar do tempo, acabamos por perceber como tais singularidades não cabem em caixinhas ajustáveis de saber, elas escapam, nos causam náuseas, são incontroláveis.
            Neste sentido, tento refletir se a aprendizagem em saúde se passa junto ao protocolável e controlável, ou se, justamente, se passa quando acolhemos aquilo que nos escapa e que queremos escapar a qualquer custo. Creio que nosso corpo precisa se chocar com esses incontroláveis para ter mais vigor a cada dia, para experimentar a diferença e com ela aprender que a vida não cabe em manuais, sobretudo, quando se trata do cuidado em saúde.
            Para finalizar esta carta-diário, saliento a importância para olharmos-escutarmos nossas dores, os mal-estares que possam advir em meio as novas intervenções de cuidado, pois, elas, geralmente, nos convocam a pensar e a criar formas de maturar um encontro de atenção à saúde que, em um primeiro momento, nos escapa. É importante que façamos questão em relação as nossas dores, não as anestesiando como normalmente fazemos com as dorezinhas de cabeça que volta e meia nos incomodam na volta para a casa...

segunda-feira, 14 de maio de 2018

A história do futebol brasileiro: o mundo GreNal


http://nafurquilha.com.br/tribunal/casos-e-historias-futebol-brasileiro-o-mundo-grenal/



12 de maio de 2018

Em Casos e histórias, Tribunal da bola
Por Na Furquilha

Por terras gaúchas, ao sul do país, habitam e reinam dois gigantes do futebol brasileiro. Grêmio e Internacional (GreNal) são os únicos clubes do Brasil que de alguma forma medem forças, de igual para igual, junto às potências da região Sudeste, maior centro econômico tupiniquim.
Internacional e Grêmio variam em suas glórias ao longo das décadas – quando um está bem o outro está mal, e vice-versa. No Rio Grande do Sul isso também é conhecido como a “gangorra GreNal”. O fato é que, invariavelmente, um ou outro conseguem feitos gigantes que, na soma da história, elevaram a dupla aos postos mais altos do país do futebol. A dupla GreNal, ao representar o estado sul-rio-grandense, é o terceiro maior campeão em Campeonatos Brasileiros, o segundo em Copas do Brasil, o segundo em Libertadores, o primeiro em Sul-americanas e em Recopas Sul-americanas, e o segundo em Mundiais. Glórias conquistadas a unhas e dentes, dentro de um país com milhares de clubes e famoso por formar os grandes gênios do maior espetáculo esportivo da terra.
O que acontece com esta dupla para conseguir tais feitos, distinguindo-se das demais regiões do Brasil, que acabam coadjuvantes em relação aos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais? Seria possível efetuar várias análises, pensar infinitas hipóteses, ou, simplesmente, entender que não há uma explicação cabível para algo que se torna quase místico, tocado tão somente pela magia do futebol de nos reservar sempre surpresas em suas batalhas pelo amor da pelota.
A hipótese aqui traçada diz respeito a algo de singular que atravessa Inter e Grêmio no que tange a alma institucional de ambos, no caso, sua localidade territorial dentro do Brasil. O Rio Grande do Sul, casa da dupla GreNal, é fronteiriço às linhas do Uruguai e da Argentina, o que produziu uma cultura que acolhe tanto os costumes brasileiros como os uruguaios e os argentinos. O povo rio-grandense é, então, brasileiro, assim como “gaucho”. “Gaucho” sem acento no ‘u’ mesmo, que indica a cultura sulista do sul das Américas, das bandas orientais como se dizia em séculos passados.
E essa miscigenação parece trazer efeitos para a proposta futebolística da dupla, já que temos, de um lado, toda uma cultura do jogo bem jogado, do toque de bola, do ganhar jogando bonito, significantes do futebol brasileiro, e do outro lado uma cultura que atravessa gerações ao sul da América Latina e que indica um futebol de muita raça, que, inclusive, volta e meia descamba para a violência. Este futebol “gaucho”, sobretudo, supera seus adversários a partir da força, muito mais do que pela técnica. Neste sentido, no futebol praticado entre as fronteiras de Brasil, Uruguai e Argentina, temos dois estilos de jogo: o brasileiro, repleto de gingado e brilho, que recorre à habilidade técnica como magia para vencer obstáculos no campo, e o “gaucho”, marcado pela bravura de um rosto robusto e de poucos amigos, que cozinha em fogo baixo seus oponentes para derrubá-los em momentos de exaustão. Grêmio e Inter nascem desta fusão, e em muitos momentos encantam o futebol brasileiro e mundial aliando técnica e garra, improvisação e estratégia de batalha campal.
Por fim, ainda é possível explorar as singularidades entre os dois times e indicar que, ao longo da história, um é sutilmente mais marcado pela técnica brasileira, e o outro pela raça das bandas orientais. O Inter costuma ganhar seus títulos com um futebol aguerrido, mas sobretudo bem jogado. Basta lembrarmos do rolo compressor dos anos 40, de Falcão e da extraordinária classe dos anos 70 e, mais recentemente, de Fernandão e todo o seu estilo técnico que levou o Inter ao topo do mundo. Jogar vistosamente é o modo colorado de ser. O Grêmio, também conhecido como imortal tricolor, quando atinge seus grandes feitos sempre é acompanhado de uma dramaticidade no estilo da Revolução Farroupilha, com muito sofrimento e um sentimento de que a guerra estava perdida, mas que, ao final, é revertido em glórias inacreditáveis. Suar sangue é o modo gremista de ser.
Sem dúvidas que existem desvios da representação aqui traçada. Não é preciso olharmos para mais longe que o Grêmio absolutamente técnico da atualidade, ou lembrarmos do drama colorado na conquista do mundial contra o Barcelona, com direito a jogador do Inter terminar o jogo sangrando, no inesquecível caso do zagueiro Índio. O Grêmio é entre os times brasileiros o mais ‘gaucho’, o Inter é entre os ‘gauchos’ o mais brasileiro, e ambos transitam antropofagicamente nesse ínterim de estilos campeões no futebol.

PS: Será que o GreNal é o maior clássico do Brasil? Ou para quem será que essa glória está reservada?

Um texto de
MÁRIO FRANCIS PETRY LONDERO
e equipe Na Furquilha
[…] pós-créditos
O autor deste artigo é Doutor em Psicologia Social e Institucional, e cronista nas horas vagas. Interesses e aspirações em comum entre o autor e a Furquilha, em especial o amor puro ao futebol, levaram a este excelente material que você acaba de ler. Que venham muito mais casos e histórias como este!