sei que não estás mais aqui, o que, convenhamos, é um alívio para os que conviveram contigo, mas apesar disso desejo te enviar umas palavrinhas, mesmo que elas cheguem apenas para outros que venham a me ler na nossa nuvem internética e não na nuvem que supostamente nos conecta ao céu celestial
apesar de biologicamente ter sido meu pai, nunca sua falta me fez falta em certo sentido, mas em outros sentidos sua falta produziu marcas, mesmo que opacas, a primeira delas é de um objeto pai interrogação: quem é meu pai? quase nunca perguntava sobre meu pai a minha mãe e familiares maternos, só sabia notícias suas quando me repreendiam por ter feito algo de errado: “está fazendo igual ao teu pai”... nestes momentos descobria que não deverias ser boa coisa e que seu exemplo era reprovado
nos dias dos pais a interrogação vinha: quem é meu pai? este dia era um não dia para mim, não entendia o seu valor, era uma comemoração morta, na infância adotava pais a medida que algumas figuras de meu mundo me causavam admiração, afetos bons, segurança e apoio, minha mãe muitas vezes ocupou este lugar, mas no fim das contas meu pai adotivo foi meu avô materno, contudo tiveram meu dindo, primos e tios mais velhos, amigos de minha mãe, pais de amigos meus que, em algum momento, fizeram essa função, fora os malditos livros que minha mãe lia para sua faculdade de biblioteconomia que faziam com que ela desviasse sua atenção em relação ao “filinho da mamá”, talvez, por alguma razão, fui ser alguém que mexe com livros e com palavras...
buenas, o tempo se esticou e quando vi completava 18 anos, um pouco antes desta idade tão simbólica era taxativo: não tenho o menor interesse em conhecer meu pai, contudo, entre os dezessete e dezoito anos algo foi mudando e reconheci o desejo de saber quem eras, aquele ponto de interrogação como pai era um bocado angustiante para adotar pelo resto da vida, te encontrei graças ao meu avô materno, que conhecia um familiar distante teu, antes comecei a te procurar pelo guia telefônico e, como sabia de sua má fama, o procurei via processos judiciais, lá achei diversos endereços que deixava a medida que transcorria sua “ficha corrida”
o primeiro encontro contigo foi amistoso, uma tentativa de buscar similaridades, as físicas eram óbvias, mas também tinham características de personalidade parecidas, o sangue quente dos londero era uma delas, via em mim, em ti e em grande parte dos familiares que acabei conhecendo certa personalidade que não leva desaforo para a casa, no todo foi bom te conhecer, pois um lado invisível meu se fazia agora visível, tia, avô e avó paternos, irmãs e irmão, primos e primas, foi ótimo conhecê-los, mesmo que pouco tempo depois toda a família fosse mais uma vez traumatizada por seus atos
nos distanciamos mais uma vez, apesar de eu conservar a relação com alguns parentes paternos, mas o fato é que sua pessoa só me causou ainda mais fantasmas, quem era meu pai? um monstro... como conviver com dias dos pais primeiramente vazios e posteriormente aterrorizantes? o dia dos pais era um dia morto e cheio de fantasmas
a vida seguiu seu rumo, fui me construindo em ziguezague, e apesar dos percalços acabei por ter bons encontros também
não tinha em mente formar uma família e muito menos ter filhos, mas aí chegou 2018, e bateu aquela vontade de experimentar ter uma família, de maneira desejada mas não planejada eu e minha companheira engravidamos no mesmo ano em que nos conhecemos, aliás, namoramos, fomos morar juntos e casamos tudo neste ano de numeração cabalística...
era julho de 2018 e soubemos da vinda de Mônica, agosto era logo ali e o dia dos pais se fez presente pela primeira vez para mim, não foi um domingo morto, angustiante, sem ter o que fazer, foi um dia radiante, no qual comecei a rever minha questão de quem era meu pai
de 2018 para 2022 cinco dias dos pais se passaram, e em cada um deles revejo um pouco mais a questão de quem seria meu pai, passei a perguntar que pai sou eu, ou como me formei pai, e certamente foi com os vazios deixados por ti, por olhar suas atitudes e vê-las como exemplos ao contrário, que estou cá me criando pai, mas também existem outras assinaturas da minha formação como pai, minha mãe, meu avô materno, meu dindo, meu analista (que tem o mesmo nome que meu pai biológico), meu sogro, primos, tios e meus grandes amigos que foram pais antes de mim
fora isto e, sobretudo, vou inventando a paternidade graças a minha companheira e as minhas filhas, como sinto orgulho delas e o quão sou grato a elas e a minha esposa por me ajudarem a experimentar construir um pai em mim, de alguma forma aquele vazio angustiante vai passando a medida que Mônica e Martina crescem dentro e fora de mim, a cada conquista delas, a cada sofrimento que passamos, a cada angustia, a cada cansaço ou irritação que tenho por conta delas, a cada brilho nos olhos que elas me fazem ter, vou colorindo um desenho até então opaco do que seria um pai, hoje em dia este ser pai está cada vez mais colorido, cheio de tinturas que imprimem cores diversas a partir das experiências que a Gringa e a Goda me proporcionam enquanto Filhas