sexta-feira, 25 de outubro de 2013

A HORA DO SOCO E O RIDÍCULO QUE SE REBAIXA AO AMOR


 

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo...

(Álvaro de Campos – Poema em Linha Reta)

 

            Sociedade do espetáculo, cultura da imagem, da sustentação de uma performance de campeão em tudo! Difícil ser humano quando se exige um eterno acerto nos atos da vida, sobretudo, quando o desafinar frente ao pedido de perfeição é algo elementar na invenção do sujeito. Para Pessoa (BERNARDO SOARES, p.132) a “vitória é uma grosseiria”, aqueles que sempre vencem perdem a possibilidade do desalento, da solidão instalada pela derrota que fere ao apontar as fragilidades. Humanos sem alma esses que somente vencem, ficam sossegados.

            Fernando Pessoa, que em sua obra em muitos momentos faz uma ode a derrota, deseja as feridas e não o anestesiamento das dores que uma vitória pode adiar. Problematiza a perfeição instalada no homem desde os tempos plantônicos. E  parece que nos dias de hoje ainda a vontade do ideal prevalece, imagem que ganha mais força a partir dos fluxos capitalísticos que inspiram a competição desenfreada no seio do social. Competição que faz de cada ser humano um lugar do consumo de imagens vencedoras. Temos que sempre nos apresentarmos bem, ganhadores, sem espaço para insucessos. A maquiagem impera e os borrões advindos das lágrimas de tristezas escondidas num rosto bonito são deletadas, não aparecem nas fotos dos facebooks da vida. O que não é permitido surgir quando o fracasso se torna proibido?

            Pessoa nos proporciona algumas pistas... Ele sente falta de gente no mundo, de pessoas humanas, encarnadas no que é próprio da espécie, a saber, um animal que brinca, que sente medo, chora e ri, que acerta sim, mas, possivelmente, depois de muitas tentativas errantes. Esse percorrer a vida sem a intenção de ser acertivo, exato, burocrata nas relações e ações que a vida provoca parece ser a dica do que Pessoa se recente na humanidade com a qual convive:

 

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana, que me confessasse uma infâmea, que contasse um ato de covardia [...] Onde há gente no mundo?

(Álvaro de Campos – Poema em Linha Reta)

 

            Diante deste panorama podemos trazer ao pensamento o papel da clínica na atualidade. Ela que vem sendo transformada pelas tecnologias, por complexos aparelhos que mapeam o sistema cerebral, por uma variedade enorme de medicamentos sempre promovidos na mídia e com certificado científico que confirma sua capacidade de cura. Estamos quase lá anuncia o iludido preso na cela da verdade científica! Atravessado por essa lógica, por quais caminhos podemos percorrer na prática clínica, o que queremos com ela, ou melhor, o que ela pode querer?

Se a pautarmos por essa lógica do acerto, do humano sempre vitorioso, teremos uma clínica sem possibilidades de se angustiar com as perdas, com os caminhos errantes que não se sabe onde vai parar. Ela se guiaria por um tratamento que limita o humano a um traçado justo, já desenhado e previsível pelo ideal da vitória. A clínica volta-se para uma proibição das imperfeições, mingua a criação de personagens não apropriados por certa modelagem de como viver. É como a clínica das cirurgias estéticas que procura o corpo perfeito, ou, da a clínica medicamentosa que abafa os possíveis mal-estar advindos do que não se encontra tão “quadradinho” na vida.

É uma clínica que não admite a imprevisibilidade e a fatalidade de que o humano é falho/imperfeito. Só possui um personagem homogeneizante das singularidades da vida em seu discurso de “cuidado”. Tenta suprimir o humano que escreve cartas de amor ridículas, que tem angústia por coisa pouca, que é uma imensidão de sentimentos que vão da mais alta potência ao mais baixo das sensações – tenta, equilibrar o desequilíbrio do homem. É uma injeção de assossegamento...

Como atender alguém que chega impregnado de moralidades e julgamentos sobre si mesmo se não admitirmos que isso é do homem em seu fracasso relacional com a vida? Como pretender desgarrar o humano de seus medos e mesquinharias se isso também é seu, pois, na maioria das vezes, quando a hora do soco surge, nos agachamos para fora da possibilidade do soco?

            A vida que perpassa a clínica é um pouco assim, fracassada, repleta de atos ridículos que percorrem “paisagens errantes em um trajeto que ruma para a produção de sentidos”. E são esses trajetos um tanto atrapalhados,  pouco adeptos a uma modelagem, errantes por natureza, que nos tornam humanos e potentes em sempre inventar mundos, singularidades. A poesia de pessoa na sua diversidade de heterônimos parece indicar a clínica tal trajeto atrapalhado, um caminho inventivo e diversificado com o qual ainda estamos por vir a saber, que implica a cada encontro construir um mundo diferente, distante da ilusão do certo e do errado, da verdade e de suas certezas. A clínica, bem como a vida estão em processo de invenção por conta das incertezas que constituem o mundo, ou melhor, os mundos. Pessoa parece nos indicar que a cada encontro, a cada heterônimo nos é possível inaugurar um novo mundo, dasassossegar o que até então tínhamos como possível. Afinal, como Bernardo Soares mesmo comenta: “Como tudo cansa se é uma coisa definida!” (p.171).

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