Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo...
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo...
(Álvaro
de Campos – Poema em Linha Reta)
Sociedade do espetáculo, cultura da
imagem, da sustentação de uma performance de campeão em tudo! Difícil ser
humano quando se exige um eterno acerto nos atos da vida, sobretudo, quando o
desafinar frente ao pedido de perfeição é algo elementar na invenção do
sujeito. Para Pessoa (BERNARDO SOARES, p.132) a “vitória é uma grosseiria”,
aqueles que sempre vencem perdem a possibilidade do desalento, da solidão
instalada pela derrota que fere ao apontar as fragilidades. Humanos sem alma
esses que somente vencem, ficam sossegados.
Fernando Pessoa, que em sua obra em
muitos momentos faz uma ode a derrota, deseja as feridas e não o anestesiamento
das dores que uma vitória pode adiar. Problematiza a perfeição instalada no
homem desde os tempos plantônicos. E
parece que nos dias de hoje ainda a vontade do ideal prevalece, imagem que
ganha mais força a partir dos fluxos capitalísticos que inspiram a competição
desenfreada no seio do social. Competição que faz de cada ser humano um lugar
do consumo de imagens vencedoras. Temos que sempre nos apresentarmos bem,
ganhadores, sem espaço para insucessos. A maquiagem impera e os borrões
advindos das lágrimas de tristezas escondidas num rosto bonito são deletadas,
não aparecem nas fotos dos facebooks da vida. O que não é permitido surgir
quando o fracasso se torna proibido?
Pessoa nos proporciona algumas
pistas... Ele sente falta de gente no mundo, de pessoas humanas, encarnadas no
que é próprio da espécie, a saber, um animal que brinca, que sente medo, chora
e ri, que acerta sim, mas, possivelmente, depois de muitas tentativas errantes.
Esse percorrer a vida sem a intenção de ser acertivo, exato, burocrata nas
relações e ações que a vida provoca parece ser a dica do que Pessoa se recente
na humanidade com a qual convive:
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana, que me
confessasse uma infâmea, que contasse um ato de covardia [...] Onde há gente no
mundo?
(Álvaro de Campos – Poema em Linha Reta)
Diante deste panorama podemos trazer
ao pensamento o papel da clínica na atualidade. Ela que vem sendo transformada
pelas tecnologias, por complexos aparelhos que mapeam o sistema cerebral, por
uma variedade enorme de medicamentos sempre promovidos na mídia e com
certificado científico que confirma sua capacidade de cura. Estamos quase lá
anuncia o iludido preso na cela da verdade científica! Atravessado por essa
lógica, por quais caminhos podemos percorrer na prática clínica, o que queremos
com ela, ou melhor, o que ela pode querer?
Se a pautarmos por essa lógica do acerto, do humano sempre vitorioso,
teremos uma clínica sem possibilidades de se angustiar com as perdas, com os
caminhos errantes que não se sabe onde vai parar. Ela se guiaria por um
tratamento que limita o humano a um traçado justo, já desenhado e previsível
pelo ideal da vitória. A clínica volta-se para uma proibição das imperfeições,
mingua a criação de personagens não apropriados por certa modelagem de como
viver. É como a clínica das cirurgias estéticas que procura o corpo perfeito, ou,
da a clínica medicamentosa que abafa os possíveis mal-estar advindos do que não
se encontra tão “quadradinho” na vida.
É uma clínica que não admite a imprevisibilidade e a fatalidade de que o
humano é falho/imperfeito. Só possui um personagem homogeneizante das
singularidades da vida em seu discurso de “cuidado”. Tenta suprimir o humano que
escreve cartas de amor ridículas, que tem angústia por coisa pouca, que é uma
imensidão de sentimentos que vão da mais alta potência ao mais baixo das
sensações – tenta, equilibrar o desequilíbrio do homem. É uma injeção de
assossegamento...
Como atender alguém que chega impregnado de moralidades e julgamentos sobre
si mesmo se não admitirmos que isso é do homem em seu fracasso relacional com a
vida? Como pretender desgarrar o humano de seus medos e mesquinharias se isso
também é seu, pois, na maioria das vezes, quando a hora do soco surge, nos
agachamos para fora da possibilidade do soco?
A vida que perpassa a
clínica é um pouco assim, fracassada, repleta de atos ridículos que percorrem
“paisagens errantes em um trajeto que ruma para a produção de sentidos”. E são
esses trajetos um tanto atrapalhados, pouco adeptos a uma modelagem, errantes por
natureza, que nos tornam humanos e potentes em sempre inventar mundos,
singularidades. A poesia de pessoa na sua diversidade de heterônimos parece
indicar a clínica tal trajeto atrapalhado, um caminho inventivo e diversificado
com o qual ainda estamos por vir a saber, que implica a cada encontro construir
um mundo diferente, distante da ilusão do certo e do errado, da verdade e de
suas certezas. A clínica, bem como a vida estão em processo de invenção por
conta das incertezas que constituem o mundo, ou melhor, os mundos. Pessoa
parece nos indicar que a cada encontro, a cada heterônimo nos é possível
inaugurar um novo mundo, dasassossegar o que até então tínhamos como possível.
Afinal, como Bernardo Soares mesmo comenta: “Como tudo cansa se é uma coisa
definida!” (p.171).
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