sexta-feira, 25 de outubro de 2013

NOVAS MANEIRAS DE FINGIR COMPREENDER O MUNDO


Como compreender o mundo? É possível fazê-lo de maneira universalizante? Humano demasiado humano... Temos uma forte atração em querer a tudo dar um norte apenas. O mundo, certamente, seria mais fácil, menos angustiante, porém, possivelmente estaria morto em poesia... Não foram poucas as tentativas de apreender o mundo diante de uma figura, de uma verdade universal que nos dissesse: é por aqui rebanho!

            Alberto Caeiro, em O Guardador de Rebanho, questiona o universalismo do Deus dono de tudo diante da natureza em sua generosa multiplicidade:

 

Mas se Deus é as árvores e as flores

E os montes e o luar e o sol,

Para que lhe chamo eu Deus?

Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;

Porque, se ele se fez, para eu o ver,

Sol e Luar e flores e árvores e montes,

Se ele me aparece como sendo árvores e montes

E luar e sol e flores,

É que ele quer que eu o conheça

Como ávores e montes e flores e luar e sol...

(Alberto Caeiro, p. 220)

 

Será que devemos nomear Deus para toda a criação do universo? Será que Deus diz sobre árvores, flores, cantos de pássaros, montes e o que mais pudermos avistar? Poderia dizer sobre as relações humanas, como se portar perante elas? Nosso poeta dá as costas para esse Deus dominador/moral e pensa que se ele ao mundo deu infinitas possibilidades de existência, da mesma forma, não sente necessidade que tais criações sejam nomeadas por seu nome.

            Contudo, Pessoa, em Bernardo Soares, não se dá por satisfeito e aponta outros possíveis lugares que têm a pretensão de dominar a verdade, de realizar um universalismo. Ele comenta: “Passar dos fantasmas da fé para os espectros da razão é somente ser mudado de cela” (BERNARDO SOARES, p.66). A ciência e seu racionalismo sofre da mesma pretensão divina/platônica de alcançar o mundo das ideias – nos torna presidiários também de suas certezas.

            Pessoa, ao longo de sua obra, tensiona esses manipansos, lugares enfeitiçados de verdade, que não correm o risco de se perderem no fluxo da vida incerta. Voltando ao Platão e o lendo de maneira inversa, Pessoa expressa a incerteza da vida a partir da ideia do simulacro, daquilo que a cada passo se distancia de uma verdade posta como definitiva, despreza o mundo ideal: “Nunca fui senão um vestígio e um simulacro de mim” (BERNARDO SOARES, P.129).

            Para o poeta, tal prerrogativa da incerteza na existência é ponto fundamental para não nos iludirmos com a vontade de verdade sobre o mundo. Escrevera ele: “É sempre melhor o impreciso que embala do que o certo que basta”. A dúvida, a incapacidade de apreendermos o mundo enquanto verdade absoluta é o que nos move, nos embala a inventar novos mundos. É por aí que Fernando Pessoa sente a necessidade de inventar poetas, alguns próximos a ele, outros mais distantes, cada um inventando um mundo, ou, como bem poetara, cada um fingindo entendê-lo a partir de seu olhar:

 

O fenômeno da minha despersonalização instintiva a que aludi em minha carta anterior, para explicação da existência dos heterônimos, conduz naturalmente a essa definição. Não evoluo, viaJo. Vou mudando de personalidade, vou (aqui é que pode haver evolução) enriquecendo-me na capacidade de criar personalidades novas, novos tipos de fingir que compreendo o mundo, ou, antes, de fingir que se pode compreendê-lo. Por isso dei essa marcha em mim como comparável, não a uma evolução, mas a uma viagem: não subi de um andar para outro; segui, em planície, de um para outro lugar. Perdi, é certo, algumas simplezas e ingenuidades, que havia nos meus poemas de adolescência; isso, porém, não é evolução, mas envelhecimento.

 

A cada personalidade criada, um mundo aberto em suas verdades, verdades paralelas, dissonantes, conflitantes que ao longo da obra de Pessoa vão discutindo umas com as outras sem, de maneira nenhuma, chegar a um consenso. O consenso entre elas é o não senso. O importante é criar, dar diversidade ao mundo, transformando-o em mundos diversos. A vida está para além das regras que cotidianizam o mundo, ela é pulsante e em seu transitar desassossega o ocorrido regrado. Pessoa necessita de liberdade e a visualiza a partir da tensão que coloca entre o cotidiano demasiado cinza e sua poesia libertadora do pensar. Não devemos ser servos da norma, do cotidiano, a norma e seus modos de viver no mundo é que devem nos servir. Pessoa, em Bernardo Soares, oferece uma imagem poética arrasadora sobre o aproveitar-se das regras gramaticais ao fazer poesia:

 

Suponhamos que vejo diante de nós uma rapariga de modos masculinos. Um ente humano vulgar dirá dela. “Aquela rapariga parece um rapaz”. Um outro ente humano vulgar já mais próximo da consciência de que falar é dizer, dirá dela, “Aquela rapariga é um rapaz. Outro ainda, igualmente consciente dos deveres da expressão, mas mais animado do afecto pela concisão, que é luxúria do pensamento, dirá dela, “Aquele rapaz”. Eu direi, “Aquela rapaz”, violando a mais elementar das regras da gramática, que manda que haja concordância de gênero, como de número, entre a voz substantiva e a adjectiva. E terei dito bem; terei falado em absoluto, fotograficamente, fora da chateza, da norma, e da quotidianidade. Não terei falado: terei dito.

Obedeça à gramática quem não sabe pensar o que sente. Sirva-se dela quem sabe mandar nas suas expressões. (BERNARDO SOARES, 113).

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